Para pensar.......

O ENIGMA ELIETE


Há 15 anos leciono. Milhares de alunos passaram por minha vida. Poucos ficaram. Alguns lembro raramente, outros frequentemente. Eliete sempre. Desde que a legislação resolveu democratizar “a fórceps” a educação, a cada ano enfrentamos na sala de aula o desafio da convivência, da tolerância, do embate, da violência, da carência, da falta de referência, do abandono...

Vou para a escola munida de meus “pseudos” conhecimentos, cheia de teorias, que no enfrentamento do cotidiano se dissolvem no ar. Conheci Eliete em uma escola municipal de periferia, ela na quinta-série não sabia escrever o próprio nome, passava o tempo todo fazendo desenhos infantis que revelavam sua verdadeira idade: 4 ou 5 anos. Mais um caso de inclusão determinado pela lei. Nunca sabia como iria encontrar Eliete. Em um minuto eu era a querida “tia”, para no segundo seguinte, me transformar na bruxa. Instigada pelos alunos, adolescentes que adoram “ver o circo pegar fogo”, ela corria na sala aos gritos: - Bruxa, bruxa, bruxa...

Durante tantos anos de magistério convivi com alunos violentos, cínicos, drogados, mal amados, abandonados, traficantes, assaltantes, indisciplinados, arrogantes, e toda sorte de seres humanos que me impõe o desafio de todos os dias: como dar sentido a minha profissão?

Mas Eliete era diferente, porque minha lógica, minha didática, minhas respostas, meus “combinados”, minhas explosões, meus silêncios, ferramentas de trabalho, táticas e subterfúgios que desenvolvi durante minha jornada pedagógica, não funcionavam com ela.

Totalmente abandonada, já que nem direção, coordenação ou familiares se importavam. Sem nenhuma orientação ou apoio, convivi durante um ano com Eliete. Não ensinei nada para ela, mas ela me ensinou muito. Fazer do espaço escolar um “depósito” em que crianças e adolescentes com necessidades especiais ou não, são “confinados”, porque a lei assim o determina, é uma resposta hipócrita de uma sociedade que tem, mas não cumpre efetivamente sua Constituição, as Leis de Diretrizes e Base da Educação (LDBE) e os Direitos Humanos.

Sempre penso em Eliete, nunca consegui entendê-la, nunca consegui ajudá-la, nunca lhe ensinei nada. Ainda que não saibamos o que fazer com ela ou como decifrá-la, este enigma só existe hoje porque Eliete não é mais uma desconhecida, que sem a obrigatoriedade da inclusão, continuaria “guardada”, reclusa, trancafiada em algum quartinho ou porão. Não saberíamos sequer de sua existência, não nos incomodaria não nos instigaria.

Discutir direitos humanos, garantir direitos humanos, ainda que de cima para baixo, de forma impositiva, atrapalhada, mal feita, expõe as feridas, e ainda que estejamos longe de curá-las. Não podemos mais ignorá-las.

Obrigada Eliete, você continua sendo um enigma para mim, mas com certeza conhecê-la me transformou em alguém menos indiferente.    

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